Tenho pensado muito sobre comida ultimamente. Claro que isso é inerente à minha nova atividade como editora de uma revista de enogastronomia.
Mas isso não quer dizer que algumas vezes o que mais me chame a atenção seja a 'experiência' gastronômica como um todo, fora dos alimentos e das bebidas em si.
Não consigo lembrar qual foi o chef de cozinha que me disse uma vez que não fazia comida caseira, que era contra essa coisa de
confort food. Ele explicou que se a pessoa se dá ao trabalho de sair de casa e pagar por uma comida, ela não quer a comida da vovó. Completou que esse pensamento de comida caseira, comida da mãe é coisa de gente que relegou os pequenos prazeres (de preparar um macarrão decente com boa manteiga, ervas e queijo de boa qualidade por exemplo) à 'secretária do lar' e que está com o paladar tão travado por
fast food e comida à quilo, que não consegue mais comer um simples bife bem feito sem achar aquilo de outro mundo.
E isso me faz pensar que muito de nossa cultura culinária está mais ligada à família do que à alta gastronomia, pois fora dos restaurantes à quilo (que me parecem uma praga nacional sem precedentes) e as praças de comida rápida dos shoppings, o que nos resta é comer em casa (e isso implica em trabalho, é claro) ou buscar um restaurante que atenda às nossas necessidades (o que nem sempre é possível).
É fato que, como em tantas outras realidades de nosso país, a economia joga um jogo muito importante aí. Mulheres deixaram suas casas para trabalhar, crianças ficam com babás, empregadas ou comem na escola, as famílias se unem e se separam com a velocidade da montagem de um hamburger genérico. Vovós e vovôs estão na academia, ou continuam no mercado de trabalho. E, em paralelo, o poder do marketing e da indústria fez crescerem as redes de comida rápida, os ingredientes pré-preparados, as escolas de gastronomia e todo um mundo sem precedentes. O que comer com o que você pode pagar? Vale a pena escolher uma batata frita congelada, excessivamente salgada, comida com garfo de plástico só para dizer que está 'comendo fora'?
O que é a 'experiência gastronômica'?
Eu não vou entrar em detalhes dessa discussão pois esse pensamento ainda está tomando forma em meu cérebro, mas vou usar este espaço para contar sobre minha última refeição na Itália este ano. Foi no final de maio, na cidade de Milão, num bairro bem perto do centro mas distante o suficiente para não ser turístico, e boa parte do que veio à seguir foi um delicioso acaso.
Toda vez que viajo me 'dou' de presente uma refeição mais elegante, num restaurante indicado por alguém que seja capaz de proferir palavras sobre ele que vão além do 'gostoso e bonito'. Assim, fiquei sabendo que existia um desses locais a poucos quarteirões do hotel onde eu estava. Peguei as indicações na portaria e sai em direção ao local.
Que eu não encontrei!
É isso mesmo, não encontrei o tal do restaurante, mas passei em frente duas vezes da Trattoria Il Carpaccio, e numa olhadela para dentro, achei o local convidativo.
Internamente o local me agradou também. Logo vi que estava em um restaurante que atendia uma clientela local (e fiel). O garçom, daqueles com ares de estar no local há tanto tempo que é meio como um dono, me indicou uma mesa central, no primeiro salão (eram vários) e me lembro de gostar dela pois logo atrás de mim ficava a convidativa prateleira da foto acima!
Na frente de minha mesa um outro salão, movimentado mas não lotado. Como na Italia dispensar a entrada é afirmar que você não sabe nada sobre 'como comer bem', eu não iria me deixar passar por essa saia justa. Assim, pedi uma entrada mista para uma pessoa, e recebi o que veio abaixo: uma tábua com melão, salame e presunto Parma e uma bela porção de panzanela (a salada de pão, tomates frescos e manjericão que é tão amada pelos italianos).
Quando pedi uma garrafa de vinho que não estava entre as mais baratas da carta, recebi como cortesia o simpático prato abaixo, de abobrinhas firmes empanadas e um quadrado de massa recheado com uma fatia de presunto. Vale dizer que não apenas o garçom me cumprimentou pela escolha, como também o comensal da mesa em frente, um senhor italiano que me disse estar bebendo uma garrafa de um Syrah novo. A minha era de Barbaresco. Eu 'quase' lhe ofereci uma taça, mas sabendo como são os italianos pensei que isso seria um convite para uma conversa interminável, e tudo o que eu queria era saborear minha refeição.
Enquanto eu comida devagar a enorme entrada, comecei a observar as pessoas à minha volta: o casal ao lado cujo homem comia do prato da moça mas insistia que não queria um para ele (ela acabou pagando toda a conta), os dois orientais que comeram muito enquanto um deles tomava grande goles de um vinho muito caro e seu companheiro acompanhava o macarrão com coca-cola, a mesa 'da firma' onde os engravatados sorviam vinho branco e tomavam dois cafés, e o senhor - bem velhinho - numa mesa ao lado.
Esse senhor foi quem me chamou a atenção para onde eu estava: eu havia entrado diretamente no meu filme preferido de Ettore Scola 'O Jantar'.
A realidade da situação me fez ficar rindo sozinha enquanto a taça de meu vinho se esvaziava.
Para quem nunca assitiu o filme, a ação quase toda se passa numa noite em um restaurante italiano movimentado. Clientes, equipe e a dona do local interagem e aos poucos vamos sabendo de suas estórias, seus dramas, a comédia do cotidiano.
Na foto acima estão dois dos personagens principais, Fanny Ardant, a dona do local e Vittorio de Sicca, um dos clientes fiés, que senta-se quase sempre no mesmo local, olha todo o cardápio e pede água e arroz branco!
Olhem ele alí, no canto, tomando seu cafezinho! Na minha realidade, ele era provavelmente um advogado, pois eles o chamavam de 'dottore' e perguntavam como estava o escritório. Sua garrafa de vinho branco (já aberta) chegou logo após ele se sentar e o garçom lhe perguntou o que ele queria comer naquele dia, sem cardápio, sem nada.
Quanto ao casal que mencionei antes, não os fotografei, é claro, mas me lembraram o personagem de Giovanni Giovannini, na foto abaixo. Um professor que tem um caso com sua aluna e ela resolve ler para ele no restaurante uma carta que escreveu para a esposa dele, pedindo que ela o 'liberasse' da obrigação do casamento.
Quando meu prato principal chegou (obviamente meia porção de risoto milanês) eu já estava totalmente imersa naquele universo paralelo que se formara à minha volta, e com o auxílio de minha imaginação.
A cozinheira (e proprietária - na foto abaixo) veio cumprimentar o 'dottore' e outros clientes que ela parecia conhecer do berço. Aproveitou para me perguntar da refeição e para pegar alguns dos tomates que estavam ali atrás de mim. Voltou em seguida para saber o que eu comeria de sobremesa...Madonna!!!
Sei da impossibilidade de dizer não ao chef, principalmente quando você está - visivelmente - apreciando sua refeição. Assim, mesmo com a barriga cheia de boa comida e excelente vinho e com a cabeça pululando de ideias, aceitei a dica da macedônia de frutas.
O que é a experiência gastronômica afinal? O que é um bom restaurante? É a boa companhia (eu estava sozinha), o bom vinho (eu vinha de dez dias provando Barolos e Proseccos), o bom ambiente (vocês viram as fotos, o local não é nada demais). Fato é, que não tenho respostas. Mas eu obviamente parecia satisfeita no amplo sentido da palavra, pois o garçom pediu se poderia - com a minha câmera - tirar uma foto minha. Estou aí,
nel pranzo.*
* O almoço