Texto publicado na revista ADEGA, alguns anos atrás.
Santos néctares
Superando as diferenças entre as religiões, o fruto da videira se transforma para fazer parte de todos os rituais e crenças
por Sílvia Mascella Rosa
" O anjo Lúcifer foi obrigado a deixar o Céu e a companhia de Deus por sua vaidade e egoísmo. Veio habitar a terra e tomou por morada o Monte Vesúvio. De seu reino de fogo, Lúcifer começou a destruir tudo à sua volta. Jesus, entristecido com essa visão, começou a chorar e suas lágrimas caíram sobre as lavas do vulcão. Dessas lágrimas vertidas sobre as lavas brotaram videiras e delas fez-se o vinho Lacryma Christi (Lágrima de Cristo)."
Esta lenda é somente uma das tantas relacionadas com o conhecido vinho produzido no sul da Itália desde tempos medievais.
A utilização do nome "Lacryma Christi" criou confusão no começo do século passado com os portugueses do Douro que produziam o Vinho do Porto branco. Eles passaram a utilizar a imagem de Cristo no rótulo e o nome Lacrima Christi. Depois de um longo processo, os portugueses foram impedidos de utilizar o nome completo e atualmente usam somente a imagem e a palavra Lacrima.
Raízes Bíblicas
Foi entre os judeus que o vinho passou a ter uma presença mais sóbria ligada à religião. A Bíblia conta que Noé, ao descer da arca ao final do dilúvio, plantou uma videira, como um gesto simbólico de celebração da vida. Está no Talmud o seguinte preceito: "Farás da tua mesa um altar ao Senhor" e nessa mesa está sempre presente o vinho. "Essa tradição vem dos tempos bíblicos e o vinho, para nós, representa a alegria e a felicidade, assim é produto essencial em todas as nossas celebrações", explica o rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista.
O vinho ao qual o rabino se refere não é um vinho qualquer, mas um que obedece às leis da kashrut (conjunto de leis alimentares baseada nos preceitos do livro de Levítico) e que determinam o que é kosher (aprovado para ser consumido pelo povo judeu).
O rabino Michel explicou que o kosher do vinho precisa ser observado por um judeu praticante para garantir que o produto não é produzido para rituais pagãos (como acontecia na antiguidade) e, sim, para consumo do povo judeu. "Existe também o vinho mevushal, que sofre um processo de pasteurização, pois isso definitivamente o separa daquele que poderia ser consumido em outros rituais que não as festas judaicas", completa o rabino.
Até o ano passado a Casa Valduga só preparava os vinhos não mevushal, porém, neste ano, eles também serão feitos para a comunidade. A diretora comercial da Valduga, Juciane Casagrande, conta que a empresa precisa contratar esses rabinos para o processo de kasherização todos os anos, pois a certificação deles é dada a cada safra. "Mas assim aproveitamos a safra das uvas e, com a presença deles, também preparamos o suco, que é naturalmente mevushal, pois precisa ser pasteurizado antes do engarrafamento", revela Juciane.
As regras do Alcorão
O suco de uva brasileiro (quando recebe a certificação halal) também atende às regras da comunidade islâmica, que não permite o consumo de nenhuma bebida alcoólica. "Entendemos que o vinho é bom para o corpo humano, mas entendemos que seus malefícios superam os benefícios, portanto ele é proibido pelo Alcorão", conta Dib Ahmad el Tarass, gestor do núcleo de desenvolvimento da Halal Brasil, escritório comercial especializado em certificação para produtos adequados ao povo islâmico.
Halal é a palavra árabe que significa lícito. O gestor da Halal Brasil explica que aqui o processo de certificação é inovador, pois está atento não somente ao que ditam as regras do islamismo, mas também às regras de segurança alimentar e de boas práticas industriais. "É como uma ISO 9000 que existe há mais de mil anos", brinca Dib Ahmad.
Suco de uva brasileiro, certificado para consumo da comunidade islâmica, tenta ganhar espaço no mercado internacional participando de feiras, como a de Dubai. Já o vinho preparado para a Eucaristia possui tradição no Brasil, produzido para atender as necessidades da Igreja Católica
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A primeira empresa brasileira a obter esse selo foi a Cooperativa Aurora, com seu suco Casa de Bento, em 2009, mas os brasileiros estão correndo atrás desse mercado que, segundo Dib Ahmad, movimentou, no mundo, 578 bilhões de dólares no ano passado só em alimentos e bebidas certificados. O Brasil, obviamente, quer sua fatia desse bolo e para isso vem participando das feiras de alimentos em Dubai, que neste ano reuniu cinco produtores de suco brasileiros.
Corpo e Sangue
Mais fáceis de agradar são, com certeza, os cristãos. Os evangélicos, que não permitem o consumo de bebidas alcoólicas argumentando o mesmo malefício que os islâmicos, servem suco de uva em suas celebrações da Santa Ceia e afirmam, como fazem os Adventistas, por exemplo, que o que Jesus bebeu não era vinho e, sim, suco.
Os católicos, por sua vez, são veementes ao afirmar que Jesus bebeu vinho. Uma das passagens mais importantes da Bíblia, em que os fiéis afirmam que Jesus começa a mostrar sua natureza sagrada, é a das Bodas de Caná onde, atendendo a um pedido de sua mãe, transforma água em vinho. Contudo, o grande momento do vinho na Bíblia é exatamente a Santa Ceia.
Desse episódio nasce a Eucaristia, que é o momento mais importante de toda a missa. "É nesse momento que o padre celebrante personifica o Cristo (in persona Christi) e repete as suas palavras sagradas que farão a transubstanciação do pão e do vinho no corpo e no sangue de Cristo", explica o padre Juarez Pedro de Castro, da Arquidiocese de São Paulo.
Para essa celebração é necessário um vinho específico, determinado pelas leis canônicas no Concílio de Trento em 1917 e revisadas em 1981. Segundo essas leis, o vinho deve ser extraído "do fruto da videira", ser natural e genuíno, isto é, não misturado com substâncias estranhas. "Já há muito tempo o vinho para a missa tem a graduação alcoólica alta, por dois motivos: o primeiro é que ele deve ser guardado na Sacristia, onde não há refrigeração, e o segundo é que ele é consumido aos poucos e, por isso, precisa ser mantido íntegro por mais tempo", conta o padre.
No Brasil, o mais famoso vinho de missa é o Canônico, produzido pela Salton há 70 anos, desde que um padre espanhol, de nome Franco, cuja paróquia ficava do outro lado da rua da vinícola em Bento Gonçalves, percebeu que não havia ali nenhum vinho específico para a missa. Ele foi então falar com um dos fundadores da vinícola (Nini Salton) para saber se a empresa poderia fazer esse vinho e, com o pedido aceito, o padre trouxe a "receita". Desde 1957, a empresa tem a autorização da Cúria Metropolitana para fazer esse vinho que, atualmente, atende a igrejas de todo o País, com produção média anual de 300 mil garrafas. O corte de uvas Moscato (50%), Saint Emilion (40%) e Isabel (10%) resulta em um vinho licoroso doce, com graduação alcoólica de 16 graus Lussac.
Ortodoxos
Os cristãos ortodoxos têm uma aproximação ainda maior com o vinho na missa e em outras celebrações. O sacristão da Catedral Ortodoxa de São Paulo explicou que, durante a Eucaristia, os fiéis recebem uma pequena colher de vinho, que veio do cálice consagrado onde o sacerdote misturou o pão e o vinho. Além disso, durante as cerimônias de casamento, os noivos tomam três goles de vinho cada um, da mesma taça, simbolizando o Pai, o Filho e o Espírito Santo. Até mesmo no batismo, as crianças recebem uma quantidade mínima de vinho e pão.
Ao contrário do que se imagina, o vinho de missa não é tinto, mas rosado. "Normalmente, os paramentos da celebração (acessórios, toalhas) são claros ou brancos e, se for um vinho escuro, será fácil manchar", revela o enólogo Ricardo Chesini, cuja família produz um vinho para missa desde meados da década de 1980.
Sendo ou não religiosos, mas como apreciadores de bons vinhos em momentos felizes, vale a pena lembrar as palavras do encarregado da festa das Bodas de Caná, que recebeu o vinho recém-transformado por Jesus: "Todo mundo serve primeiro o vinho bom e quando os convidados já beberam bastante serve o menos bom. Tu guardaste o vinho bom até agora".