Colheita 2016

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quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

"Surreal but nice"

Sou fã de uma boa comédia romântica, dessas descompromissadas, só para entretenimento. Se for ambientanda em um lugar interessante, melhor ainda.
Uma de minhas preferidas é "Um Lugar Chamado Notting Hill", onde o personagem de Hugh Grant, dono de uma livraria especializada em livros de viagem, no bairro londrino de Notting Hill Gate (foto abaixo), se apaixona pela personagem de Julia Roberts, uma atriz americana muito famosa com a qual ele tem literalmente um encontrão nas ruas do bairro.
Em uma cena memorável, pouco depois deles se esbarrarem, ele diz que foi muito interessante conhecê-la e a frase que ele usa é "Surreal but nice" (surreal mas bom). Mais do que qualquer coisa, seu tom de voz e sua expressão denotam a confusão e (talvez) o maravilhamento de alguém cuja rotina foi alterada por fatos que fogem de seu controle e de explicações lógicas. Quantas vezes já não passamos por isso? É uma sensação boa, se soubermos aproveitá-la e uma experiência péssima para o tipo de gente que gosta de controlar tudo.

Surreal but nice, foi um dos dias de minha viagem ao sul, na semana passada. Claro que eu estava fora de minha rotina paulistana e estava em um lugar que já posso dizer que conheço razoavelmente. Mas isso não quer dizer que tudo o que coube nesse dia não tenha sido surpreendente, de variadas formas.
 

Começamos o dia no atelier do escultor Bez Batti, que faz parte do roteiro 'Caminhos de Pedra', a rota mais antiga e bem organizada da região.
Ele nos falou dos desafios da profissão que exerce há quase meio século, de como é viver de arte e de como é 'encontrar' dentro das diversas variedades de basalto que utiliza, as peças que deseja fazer. É um desses artistas como vemos poucos hoje em dia.
Aliás, diante da qualidade (ou falta de) do que atualmente chamam de arte, tendo a achar que a arte morreu e foi jogada numa vala comum, pois quase ninguém sabe onde foi parar a poesia, a música e uma boa parte das artes plásticas.
Mas como o cinema ainda consegue vez por outra nos surpreender, digamos que a visita ao Bez Batti foi o 'take 1' (tomada 1) desse dia surreal.
Saindo do atelier, seguimos pela linda estrada do Caminhos de Pedra, numa manhã de verão impecavelmente bela e fomos parar na Casa do Mate, que tem essa roda d'água que move os socadores da foto abaixo (de 1920), onde tivemos uma aula sobre a seleção, secagem e preparação da erva-mate, que não poderia terminar senão com uma cuia de mate fresco, feito pela dona do local. Delicioso e não excessivamente quente, preparando nosso corpo (e fígado) para o restante do dia.
Lembrei-me muito de minha mãe, apreciadora de um bom mate, e que me transmitiu o gosto pelo sabor amargo.
 

Seguindo ainda pelos Caminhos de Pedra, chegamos até a Casa Vanni (foto abaixo), um local que eu conheci no ano passado e que me impressionou muito pela beleza e pelo cuidado artesanal com o qual a dona (uma moça jovem e muito simpática) aplicou à casa, à decoração e ao cardápio.

Quando eu soube que nossa parada seria lá, já fiquei feliz, mas a surpresa aumentou ainda mais quando vi que nossa degustação seria sob as árvores, numa espécie de piquenique.

 (a foto acima é de Gilmar Gomes/Ibravin)


Pelas imagens já dá para perceber como essa degustação foi bacana. Apenas vinhos brancos e rosados, todos servidos pelo sommelier do Ibravin, junto com frutas frescas e secas, frios, castanhas e pães artesanais. Ao final um risoto e sorvete com pêssegos.
Se o dia tivesse terminado aí já estaria de bom tamanho, certo? Mas a palavra chave aqui é 'surreal' e assim seguimos para o distrito de Tuiuty, do outro lado de Bento Gonçalves, onde fomos recebidos pela equipe da vinícola Salton, que aos 101 anos se fez de moça para nos receber com novidades e muita descontração.
 No canto da foto, a esquerda, está Vinícius Santiago, que 'habita' as páginas deste blog de quando em vez. Como sommelier da Salton ele nos recebeu para a colheita (junto com a Mônica e a Daniela Salton) e fomos todos, sob um sol de mais de 30 graus, colher uvas Cabernet Sauvignon no vinhedo que dista menos de 1km da sede. Cada um com seu chapéu de palha, avental, cesta e brístola (uma lâmina afiada e pesada, usada para cortar os cachos). A missão: selecionar cachos íntegros, perfeitos, de grão doces e encher com eles nossa sacola. A minha está abaixo.
 De volta à sede, fomos divididos em duas equipes, cada uma com a missão de começar a fazer seu próprio vinho. A foto abaixo, feita por Gilmar Gomes, mostra nossa equipe desengarçando as uvas. Tenho certeza de que depois de apenas 7 cestas de uvas, todas as pessoas passaram a valorizar mais o trabalho do cantineiro.
Selecionadas e desengarçadas à mão, as uvas foram prensadas também por nossas mãos e depois colocadas em um garrafão chamado de 'Damiana" para receberem o fermento.
 José Maria Santana, jornalista experiente e que conhece terroirs ao redor do mundo, ficou encarregado de preparar e acrescentar as leveduras ao nosso mosto.
 A foto para a posteridade mostra a equipe e os diretores da Salton nos ladeando. O compromisso da Salton conosco agora é o de nos manter informados do progresso de 'nosso vinho', que estará pronto daqui a um ano, e do qual cada um de nós receberá uma garrafa.

Orgulhosos e cansados, partimos para uma rápida visita e um happy hour, com coquetéis que levam vinho branco ou espumante, todos eles criados por Vinícius.
 Refrescantes e bem combinados, os coquetéis chegaram numa hora perfeita, no final da tarde, acompanhando frios e queijos e uma trilha sonora jazzística irresistível.
 Tivemos hora e meia para irmos ao hotel e tomarmos um banho, para em seguida voltarmos para a Salton, onde fizemos uma inusitada degustação de vinhos brancos e tintos. Simples, não? Não, não mesmo. Provamos o mosto de variados vinhos brancos, alguns com apenas horas de fermentação, outros com um dia. Mostos que serão vinhos, em breve. Provamos uvas viníferas brancas e tintas e por fim os vinhos top da empresa.
 Para fechar com chave de ouro, um jantar muito aconchegante na cave de pedra, com um cardápio retirado do livro de receitas da matriarca dos Salton, e combinado com as receitas da avó da chef de cozinha do local. Culinária caseira com um 'twist'. Ou melhor, a música que acomopanhava tudo isso era de excelente qualidade, uma voz feminina elegante, firme e profunda, e um tenor que nos presenteou com clássicos e com clássicos do cancioneiro popular. "Nessum dorma", pois este, este foi um dia surreal!
P.S.: Coroando esse dia tão surpreendente, ainda descobri que meu fotógrafo preferido em toda a Serra, Gilmar Gomes, é primo-irmão de meu grande amigo gaúcho, o médico Eduardo Lopes. Não existem coincidências mesmo, nossas vidas estão todas entrelaçadas, ainda que a princípio não pareçam.

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